quinta-feira, 3 de março de 2011

Gaia - Capítulo 4

Capítulo 4

Draco segurava nas mãos a espada que recebera de seu pai. Analisava através do olhar cada curva da bainha, cada pedaço, cada tom de preto. Da bainha negra os olhos passaram ao cabo. As tiras de couro preto envolvendo a parte onde se segurava a espada eram macias, mas passavam a impressão de serem fortes, capazes de serem puxadas, dobradas e esmagadas sem se romperem. Do olhar, sua análise passou para o toque. Passou a mão nua pela bainha, sentindo a textura, os detalhes, o peso. Com uma pegada forte, segurou o cabo. Extremamente confortável, parecia que jamais faria calos nas mãos de quem o segurasse. Pela segunda vez na noite, desembainhou a espada. A lâmina de aparência comum refletiu a luz que vinha do teto, fazendo um feixe mais forte se destacar na parede que era cinzenta, assim como todo o resto da mansão. Depois de alguns segundos observando a lâmina, Draco fez uma careta. Ele não gostava daquela lâmina, era simplória demais para o resto da espada. Simplesmente não combinava. Fosse o que fosse o material dela, deveria ser algo muito bom para ser usado na espada mesmo estando tão fora de sincronia com o resto.

Draco se levantou arrastando a cadeira de madeira em que estava sentado, e caminhou até um móvel que estava encostado na parede. Em cima dele deixou a espada recém-recebida de Alexander, e ainda pensando nela, voltou para a escrivaninha, para continuar os estudos. O escritório de Draco era uma sala pequena se comparada a seu quarto. Tinha pouco mais de alguns metros quadrados, e era ocupada por uma escrivaninha de três gavetas, feita de madeira de carvalho, e por um móvel também de carvalho, que servia como depósito para documentos, livros, e objetos. Nas gavetas da escrivaninha, Draco guardava qualquer papel em que estivesse trabalhando, como exercícios de estudo, documentos que estava analisando, e livros que precisaria ler todos os dias, além de papel limpo e lápis. Os lápis que ele usava eram feitos de um minério assuriano, gerado por Gaia, a entidade primordial, chamado imagem-de-Gaia. Bastões feitos desse minério podiam escrever em qualquer superfície, deixando uma linha azul que não saía mesmo com o passar do tempo. Mas era possível se retirar o material utilizando magia, com um encantamento simples, ensinado cedo às crianças.
O outro móvel era composto na parte de cima por um pequeno armário, onde objetos eram depositados, abaixo dele uma prateleira - onde Draco havia há pouco colocado a espada - e algumas gavetas grandes na parte de baixo, onde se colocavam livros mais antigos, documentos e papéis que não seriam usados tão cedo.
Já sentado, Draco pegou um lápis de imagem-de-Gaia e começou a escrever em uma folha de papel, onde algumas palavras já estavam escritas. Ocasionalmente ele olhava para um livro aberto em cima da escrivaninha, o consultando sobre algum assunto. Um tremor súbito o fez perder o controle da mão e causar um risco pela extensão da folha.
— Merda! O que foi isso agora?
Ainda irritado, ele murmurou algumas palavras amaldiçoando o tremor e começou a passar o indicador pelo risco. O material azul correu do papel para seu dedo, e deslizou através dele até a palma de sua mão, se juntando ali na forma de uma pequena esfera. Draco pegou a esfera e a colocou em cima da escrivaninha, junto a outras duas, produto de correções anteriores. Ele se levantou, e dando passos pesados enquanto caminhava - um sinal de sua raiva - foi até o móvel próximo à parede. Pegou a espada e com ela na mão esquerda, saiu da sala, deixando a porta bater atrás de si, fazendo um barulho alto que ecoou pelo corredor.

Dois minutos depois Draco chegou a uma janela, na parte de trás da casa. Através do vidro ele observou o lado de fora. Estava escuro, e não se podia ver o campo que ficava na propriedade, e que mais cedo fora o cenário de sua única conversa do dia com Anette. Ele então foi até a cozinha, onde Mímin e Bertha pareciam desesperadas, sem saber o que fazer. As duas andavam de um lado ao outro, esbarrando em cadeiras, mesa e armários. Por alguns momentos Draco permaneceu parado no portal de entrada do cômodo, tentando entender o que estava acontecendo. Mímin percebeu a presença dele, e de súbito, pareceu congelar enquanto corria do fogão indo em direção a um armário. Bertha, que vinha logo atrás e não sabia de Draco, trombou contra a outra empregada, derrubando ela e a si mesma no chão. Draco deu a volta na mesa de madeira que separava ele das duas empregadas, e abaixando o rosto um pouco permaneceu olhando para elas, que lentamente viraram o rosto para ele, como se esperassem por alguma coisa.
— O que foi isso que vocês duas estavam fazendo? - perguntou Draco, com a voz fria, um resquício da raiva que sentira por causa do tremor.
— Elas provavelmente ficaram com medo do barulho - respondeu uma voz vinda da entrada da cozinha.
Imediatamente Draco se virou, e lá estava ela, Anette, parada no portal de entrada da cozinha, onde Draco estava alguns momentos antes. Ela usava um vestido vermelho de mangas até os cotovelos, e seu cabelo estava preso na parte de trás da cabeça, deixando apenas a franja solta cair pelos dois lados do rosto, e uma sapatilha simples protegia seus pés do chão frio e duro.
— Entendi, mas não achei que alguém reagiria dessa forma ao tremor. Talvez você também estivesse com medo, e por isso veio aqui na cozinha, atrás de ajuda? - seu tom era de sarcasmo.
—  Nem todos foram treinados como você, então ficar com medo é uma reação normal das pessoas.
Essa afirmação parecia ter acertado Draco em cheio, que perdeu o ar de sarcasmo e pareceu murchar. A esse tempo, Mímin e Bertha já haviam se levantado, e a mais velha retorcia uma toalha de enxugar pratos com as mãos, enquanto Mímin parecia que ia entrar em pânico.
— Senhora, não foi isso... - disse Bertha.
Nesse momento Draco se rejubilou. Um sorriso maldoso ocupou seu rosto, e ele dirigiu o olhar para Anette, como se dissesse "Viu? Você estava errada, não sou só eu que não fico com medo!".
— Logo depois do tremor - continuou Bertha - uma luz pálida tomou conta de todos os corredores da casa! Depois ela foi diminuindo, então nós fomos a seguindo, até que ela saía somente de trás da porta do salão de treinamento... Não tínhamos como saber o que era, então quando chegamos mais perto, a luz se tornou negra, e pareceu criar tentáculos que tentaram nos agarrar!
A expressão de Draco mudou de júbilo para desespero. O salão de treinamento era sagrado,  lá era onde os dois maiores tesouros da família ficavam guardados. A técnica de combate, e algo que somente os nobres conheciam: A jazida de minério da qual as armas dos líderes da família seriam feitas.

Anette notou a mudança súbita na expressão de Draco, e a pequena rixa que os dois travavam deu lugar a uma preocupação verdadeira. Seu rosto mudou para uma expressão de súplica, ela correu mais para perto de Draco, e pousando as mãos nos ombros dele perguntava em tom de desespero:
— Draco, o que foi? O que foi?! Aconteceu alguma coisa? Me responda!
Por mais que Anette se esforçasse, parecia que Draco estava em um mundo totalmente diferente, ele sequer piscou enquanto Anette continuava a gritar por ele e a balançar seus ombros. Ele puxou os braços dela para o lado, retirando-os do caminho enquanto fazia uma careta, fazendo esforço. Acabou jogando Anette para o lado, e fazendo ela tropeçar em uma cadeira e cair no chão. Todos os olhares da cozinha estavam em Draco. A expressão de indagação neles mudou para confusão. Ninguém entendia porque Draco empurrara Anette. Mas antes mesmo que alguém fizesse uma pergunta, ele disparou pelo corredor.

Durante alguns segundos ele correu pela casa. Não tinha nada na mente além de chegar o mais rápido possível ao salão de treinamento. Finalmente ele dobrou a esquina e começou a ver a porta do salão. Quanto mais rápido ele corria, mais parecia que demorava. O suor começou a descer pelo lado do rosto, mas não era de cansaço, era de preocupação, um suor frio. A respiração, da mesma forma, era forte e rápida graças à preocupação.
Parado em frente à porta dupla ele olhou para o chão. Pequenas silhuetas negras pareciam entrar e sair debaixo da porta, como pequenos tentáculos, que se moviam de forma irregular. Isso deixou Draco ainda mais preocupado, e sem hesitar ele colocou a mão no bolso, procurando pela chave que sempre trazia consigo, uma das chaves para o salão de treinamento. Finalmente a encontrou. Não havia mais nada no bolso, mas o nervosismo o fazia remexer e remexer na cavidade sem encontrar nada. Draco se apoiou na porta e enfiou a chave na fechadura. Um "click" indicou que ela havia encaixado, e ao girá-la o barulho de várias engrenagens e mecanismos se mexendo no interior da porta denunciou que ela estava se destrancando. Draco empurrou os dois pedaços da porta com toda a força que tinha, fazendo a madeira bater na parede e um estrondo se espalhar por seus ouvidos. Arfando ele atravessou o salão. A todo momento olhava em volta, procurando por alguma coisa ou alguém, mas parecia não haver ninguém, nem mesmo os pequenos tentáculos estavam lá. Um portal oposto à porta de entrada era o destino de Draco. Esse portal dava em uma escada que seguia em espiral para baixo, levando a um subsolo bem no centro da casa. Assim que a alcançou, Draco começou a correr pela escada da melhor forma que podia. Depois da primeira curva o caminho ficava escuro, não havia nem mesmo um vestígio de luz. Se apoiando na parede, ele continuava a correr, mas sempre pisava em falso, na ponta de algum degrau e terminava caindo, ou quando tinha sorte, apenas se desequilibrava e precisava parar. Foi assim durante quase dez minutos. Draco corria no escuro, descendo como se nada mais importasse além de chegar na jazida. Ele caía e se machucava, mas a dor não o afetava. As calças se rasgaram nos joelhos e o sangue começou a escorrer por eles, as mangas da camisa haviam ficado esfarrapadas pelas quedas, a cor das roupas ficou manchada pelo cinza da sujeira no chão. Parecia que aquela descida não tinha fim, mas então Draco sentiu algo estranho. Dezenas de pequenas mãos pareciam se agarrar nele. O desespero abandonou o rosto do jovem, e um sorriso maldoso o preencheu de novo. Mas ele não queria arriscar, e por isso continuou a correr. Quando já estava no final da escada um brilho negro, que escurecia uma pequena sala mal-iluminada por uma luz amarelada vinda de um cristal no teto chamou sua atenção. Era aquilo que ele estava procurando, e esse brilho fez com que se esquecesse de tudo, inclusive de se apoiar na parede e dos degraus, pisando em falso na ponta de um deles. A queda foi feia, sem apoio nenhum o corpo Draco tombou para a frente. Ele tentou se equilibrar com os braços, mas isso não serviu de nada. Draco caiu e bateu a maçã direita do rosto contra a quina de um degrau, causando um corte feio, onde parte da pele havia sido cortada, e parte arrancada. Mas isso não importava, o minério estava seguro. Ele se apoiu num dos braços e se levantou devagar, ainda avaliando onde deveria pisar. Quando teve certeza que não cairia mais, Draco elevou o olhar e passou a contemplar um minério que nascia de dentro de uma rocha côncava acinzentada. O minério era negro e parecia roubar toda a luz que havia em volta, deixando em sombra partes da rocha que estivessem próximas. Ele era um grande pedaço de forma irregular, preso em algumas partes e livre em outras. A vontade de Draco era tocá-lo. Lentamente se aproximou da rocha, erguendo uma das mãos em direção ao minério enquanto andava.
— Então o Tenebrarium ficou desse tamanho... Tenho certeza que já tem material suficiente para se fazer uma arma... - sussurrou Draco enquanto quase tocava o material preto.
"BUM!!"
Um estrondo acompanhou outro tremor. Dessa vez Draco perdeu o equilíbrio e areia e pedaços de rocha caíram do teto da caverna natural. O impacto viera de cima, e Draco sabia disso.
"Merda, o que está acontecendo? Primeiro o minério mostra uma reação louca, e agora esse barulho, o que será..."
Uma memória veia à mente de Draco. Alexander estava parado em frente à escrivaninha do escritório, e Draco, ainda um menino, estava sentado na cadeira, anotando o que o pai falava.
— Draco, vamos ver se você aprendeu o que acabamos de estudar.
— Sim, pai. - respondeu Draco colocando as mãos sobre o colo e olhando nos olhos de Alexander.
— O que é o Tenebrarium?
— O Tenebrarium é a rocha cinzenta onde o minério de Tenebra se desenvolve, e em todo o mundo, Gaia só produz o Tenebrarium na pequena caverna em nossa casa, e uma quantidade considerável de minério de Tenebra só se forma nele a cada vinte anos ou trinta.
— Certo. Quais as características mais marcantes do Tenebrarium?
— Ele absorve pequenas quantidade de energia, e pequenos flagelos negros aparecem de vez em quando.
— Exato. Mas tem uma coisa que eu não te falei ainda. Os flagelos negros, esses pequenos tentáculos, aparecem quando há movimentação de energia, seja mágica ou não, e no caso de ocorrer uma teleportação planar de uma grande massa, o Tenebrarium produziria tentáculos gigantescos e absorveria a maioria da energia lançada nas redondezas, como uma forma de produzir mais minério de Tenebra.
Era isso! O Tenebrarium havia reagido a uma teleportação planar em grande massa, e agora alguma coisa grande havia causado o tremor alguns andares a cima. Draco gelou. Anette, as empregadas e o caseiro estavam lá em cima, sem ninguém para protegê-los.

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2 comentários:

  1. Quando sai mais? Muito bom!!!!

    Gostaria de saber se você aceitaria uma parceria com o meu blog, http://ummundoemcaos.blospot.com? Nele escrevo duas histórias, uma sobre um apocalipse zumbi e a outra sobre um mundo de fantasia.

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  2. Superspider, toda semana sai um capítulo novo.

    Gostei bastante do seu blog, aceito sim a parceria, mas não sei mexer muita coisa em blog, e nem um banner eu tenho xD

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