quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Gaia - Capítulo 1

Capítulo 1

Era uma tarde ensolarada de verão. As cigarras faziam barulho na propriedade dos Bernstein. Em algum lugar dos campos, um jovem deitado à sombra de um carvalho e em cima da grama macia nota a chegada de uma garota da mesma idade que ele. Ela usava um vestido azul de alças, que descia até os joelhos. Os cabelos dela eram longos, chegavam até a metade das costas. Eram castanhos e sob a luz adquiriam um brilho pálido. Ele a olhou contra o sol, por isso não conseguiu identificar seu rosto logo de cara. Ela colocou a sombrinha que trazia entre o rosto dele e o sol, fazendo-o enxergar claramente agora.
— Ah, Anette... – disse o rapaz enquanto ajustava sua postura e se sentava – O que você veio fazer aqui hoje?

Com um sorriso estampado, a garota se sentou ao lado dele, tomando o cuidado de no final, ajeitar a saia do vestido, para que não mostrasse suas intimidades. Durante alguns segundos ela ficou o olhando. Ele trazia o cabelo solto, mesmo este sendo comprido até os ombros, o que passava uma impressão de cabeleira bagunçada. Anette começou a usar a própria mão como uma forma de pente e ajustou parcialmente o cabelo do rapaz, que era liso e castanho como o dela. Mas as semelhanças paravam por aí: enquanto Anette tinha pouco mais de um metro e meio, o rapaz tinha um e oitenta de altura. Ela era baixinha, sim, mas tinha bastante carne nas partes mais cobiçadas pelos homens. Os seios dela dariam inveja em qualquer mulher, tamanha a beleza do seu colo, sua forma, seu tamanho, e sua rigidez: mesmo quando ela se sentou, eles não balançaram nem um pouco. Sua traseira era volumosa, arredondada, e firme, da mesma forma que os seios. O rapaz se incomodou um pouco com a jovem mexendo em seu cabelo, e assim que as mãos dela se afastaram, ele balançou a cabeça, deixando o cabelo quase tão embaraçado quanto antes, apesar de ainda possuir o contorno que Anette havia deixado. Ainda com a cara emburrada, ele cobrou uma resposta da moça enquanto ajustava sua postura de novo, dessa vez se apoiando num dos braços num misto de deitado e sentado, com o rosto virado para ela.
— E então? Não vai me responder?
Olhando para longe, na direção dos fundos da mansão dos Bernstein – de onde viera – ela respondeu com a voz fraca, quase inaudível.
— Meu pai e meu irmão foram para a guerra.
— E o que tem isso de mais? Combater os bálmares é uma diversão para os nobres, tenho certeza que eles foram para o campo de batalha rindo.
— Não foram. Você nunca entenderia o que essa guerra realmente representa... você nunca precisou sair da sua casa para nada, tudo o que você queria traziam para você na mesma hora. As únicas vezes que você precisou sair da sua casa foi quando seu pai te obrigou a participar em discussões políticas com outros nobres do reino.
— Nem me venha com essa história. Discutir política faz parte do trabalho de um nobre. Se os nobres não fizerem isso, quem vai ajudar o rei a governar?
— Não é sobre política que nós estamos falando, é sobre a guerra, não tente mudar de assunto.
— Eu não estava mudando de assunto... Se você acha que eu não entendo o significado dessa guerra, então me diga você o que essa guerra é, já que é tão esperta assim.
Anette deu um suspiro enquanto fazia uma cara de decepção. Ela pensou o quanto Draco era alienado, o quanto ele não compreendia o mundo e as pessoas nele. Draco. Sim, esse era o nome do rapaz. Era comum os homens da nobreza receberem nomes relacionados a criaturas mitológicas. O pai de Draco, Alexander Von Bernstein era o general dragão branco, título recebido por ele vinte anos antes, quando a guerra contra o Império Bálmare havia cessado temporariamente. Por mais de vinte anos os bálmares estavam em guerra com os assurianos. A guerra teve início quando os bálmares, que habitam um outro plano dimensional, invadiram um plano intermediário, que fica entre o plano da balmária e o plano de Assuria. Os humanos desse plano moravam num planeta chamado Terra, que foi atacado para servir de base ao exército bálmar. Diante dessa situação, o rei da Assuria contra-atacou enviando tropas para a Terra. Quando as tropas chegaram, muito já havia sido destruído, mas os que ainda estavam vivos foram acolhidos pelo Rei, que os enviou ao plano de Assuria, os salvando da morte certa na guerra.
— Os assurianos lutam essa guerra para garantir a segurança do seu povo – disse ela, enquanto continuava a fitar a mansão – O que os bálmares querem é a dominação sobre outros povos... Meu pai me contou que eles usam tecnologia avançada para abrir portas dimensionais e invadir outros planos.
— É, eu já tinha ouvido falar nisso. Mas tem uma coisa que eu acho muito estranho... Os planos dimensionais se sobrepõem uns sobre os outros, logo todos os planos têm fronteira com dois outros planos diferentes, então por que eles tiveram o trabalho de invadir o plano dimensional da terra e depois tentar nos enfrentar, ao invés de invadir o plano que fica abaixo deles?
— Aparentemente eles não podem invadir o outro plano vizinho deles. Parece que lá existe uma barreira que isola aquele plano de qualquer contato com outro plano, uma barreira muito mais forte do que a nossa.
Durante muitos anos Assuria permanecera completamente isolada de qualquer contato com outros planos. O rei fazia isso para evitar que seu povo interferisse em planos que tivessem povos menos avançados, com culturas muito diferentes, ou cujos elementos naturais fossem diferentes de Assuria – algum desses elementos poderia se tornar popular entre os assurianos, o que causaria uma extração descontrolada no outro plano, podendo esgotar as reservas naturais desse elemento. Era de conhecimento comum entre a população que o povo do plano acima de assuria era primitivo, viviam em tribos, se vestiam com peles de animais, usavam utensílios feitos de pedra, e não conheciam nenhum tipo de ciência, nem mesmo a escrita. Já o povo do plano abaixo, os humanos, tinham uma tecnologia relativamente avançada – mesmo assim não era nada se comparada aos bálmares, que a usavam para viajar entre os planos – viviam em uma socidade sólida, e fisicamente eram muito parecidos com os assurianos. O rei estaria disposto a iniciar um contato com essa raça se não fosse um detalhe: Muitos dos minérios encontrados na terra não podiam ser encontrados em assuria, e os recursos naturais não se regeneravam com o tempo. Logo, uma extração descontrolada feita por assurianos gananciosos poderia ser inevitável.
— Anette, fazem mais de vinte anos que estamos em guerra... no começo, podia ser que o exército lutava apenas pela segurança dos assurianos, mas com o passar do tempo, a nobreza foi tomando gosto pela batalha sem fim que acontece na Terra. Hoje em dia, todo garoto nobre é treinado e educado para ter prazer em lutar, para apreciar a batalha. Essa sua perspectiva da guerra não passa de uma visão sonhadora de quem não conhece a realidade.
— Minha visão pode até ser sonhadora...– retrucou ela – Mas meu pai e meu irmão não lutam nessa guerra por diversão, eles querem garantir um futuro tranquilo para as próximas gerações. E o povo se sente dessa mesma forma, eles arriscam suas vidas no exército para que seus filhos fiquem bem, para que fiquem a salvo dessa praga devastadora que são os bálmares.

Draco permaneceu calado. Ele não tinha como retrucar contra essa afirmação de Anette, o povo realmente odiava a guerra, especialmente a burguesia conservadora, que tinha repulsa a se misturar com humanos, e odiou quando eles foram acolhidos no plano. Por isso, sequer ousavam chegar perto de um humano, e quando os burgueses conversavam somente entre eles, se referiam aos humanos de uma forma especial: "carne-podre". Os burgueses evitavam dizer isso quando haviam humanos por perto, pois anos atrás, quando começaram a usar esse termo, sempre que um burguês chamava um humano assim acabava em briga. Os burgueses sempre andam com vários guarda-costas, e é claro que a briga terminava com os humanos espancados. Tentando evitar isso, o Rei criou uma lei: qualquer burguês que arrumasse briga com um humano e o espancasse perderia o direito a comerciar em Assuria, e qualquer humano que arrumasse briga que não em defesa própria, seria preso por violar a ordem pública.

Draco e Anette se levantaram e calmamente caminharam de volta para a mansão Bernstein, aproveitando para sentir o calor do sol e a brisa que soprava pelos campos. Draco não conseguiu conter o sorriso. Anette corria alguns metros na frente e parecia não estar tão abatida apesar da situação. O vento fazia seu cabelo balançar no ar e ela parava vez ou outra para colher alguma flor que encontrava no caminho, chegando em casa com uma dúzia delas.

A mansão era quase um palácio. Tinha dezenas de cômodos e era enorme. Construída em granito-pena - um minério assuriano acinzentado extremamente resistente, mas bastante leve para o tamanho - ela se estendia por duzentos metro de um lado a outro, e mais trezentos metros separavam a entrada dos fundos. Possuía três andares e a maioria dos cômodos estava vazia - Alexander, pai de Draco, não gostava de ter serviçais ou guardas demais na casa, a quantidade deles era muito reduzida se comparada com a morada de outros nobres.

Draco subiu para sua suíte no primeiro andar, um local simples, com somente uma cama de casal, um guarda roupa, uma armadura Assuriana completa montada em um manequim, presente de Alexander, e algumas espadas presas à parede. Ele tomou banho e se trocou. Dessa vez tomou o cuidado de pentear os cabelos e amarra-los depois de vestir a camisa, o pai não gostava de ver o filho com uma aparência desleixada. Assim que teminou de se arrumar desceu para o salão de jantar. Havia pouco mais de meia dúzia de travessas com comidas típicas da região dispostas em uma mesa retangular de aproximadamente três metros de comprimento por um e meio de largura, coberta por uma toalha de mesa azul. Alexander já estava sentado na cabeceira, comendo, e Anette estava próxima a ele, sentada na lateral esquerda, sendo servida por uma criada. Uma nuvem desbloqueou o sol, e fez com que a luz entrasse pelos vitrais gigantescos na parede e desse um iluminado colorido à sala acinzentada. Todos comeram em silêncio. Anette estava preocupada demais com o irmão e o pai. Alexander sempre falava pouco, e essa característica parecia não ter passado para o filho, que não falou nada apenas porque a fome era maior e sua boca sempre estava ocupada - especialmente por causa de uma sobremesa humana chamada sorvete, que Alexander costumava fazer para alegrá-lo. Talvez tivesse feito isso por Anette.

Em todos os dias em que Alexander ficava em casa, passado o almoço, Draco tinha algumas horas para descançar, e às três da tarde se encontrava com o pai. Dessa vez não seria diferente.
Ele havia ido dormir depois do almoço, por isso deixou a pedra de despertar programada para o acordar às quinze para as três. A pedra era uma gema vermelho-clara, translúcida, feita de um dos minérios retirados do solo assuriano, o sirenil. O funcionamento da pedra era simples, bastava segura-la e pensar em uma quantidade de minutos e passada essa quantidade de minutos ela emitiria um som agudo e baixo, porém irritante o suficiente para não deixar ninguém na cama. Para desativa-la bastava um toque e o pensamento de que ela parasse.

A pedra começou a emitir seu grito na hora certa. Draco odiava aquele barulho, agarrou a pedra que havia deixado debaixo do travesseiro e pensou que ela parasse. No mesmo instante o barulho cessou. Os gritos de alguém do lado de fora chamaram a sua atenção, da janela viu uma criada de uniforme correndo atrás de um cachorro enquanto gritava.
— Alexander! Alexander! Venha aqui, seu safado, você tem que tomar banho!
O cachorro não deu ouvidos e continuou correndo pela grama dos jardins gigantes que ficavam na frente da mansão.

"Alexander... Eu lembro quando meu pai me deu ele de presente, dez anos atrás, no meu aniversário. Ele disse que era um presente muito especial, algo do planeta Terra. Quando eu vi o cachorro e ele me disse que era para eu dar um nome, na hora pensei em fazer uma homenagem a ele e dei o nome de Alexander. Os convidados riram bastante disso e minha mãe disse que eu deveria mudar o nome, mas não concordei e deixei como estava. Por mais estranho que fosse o nome, meu pai não se importou, pelo contrário, ficou feliz e sorriu bastante. Aquela foi uma das últimas vezes que meu pai sorriu antes da minha mãe morrer. Mas chega de divagação, se eu ficar tempo demais aqui vou acabar me atrasando."
O encontro que tinha com o pai todos os dias era um encontro para treinamento. Desde pequeno, todo nobre era treinado nas armas e técnicas de combate de cada família. Cada uma das famílias nobres possuíam tecnicas de combate que somente eram reveladas para o sucessor delas, decidido em um combate entre os diversos filhos, por isso os próprios pais é que eram os tutores.

Draco pegou uma espada média que estava em uma bainha negra suspensa na parede. A espada não tinha nada de mais, era feita de aço comum, a guarda em forma de cruz não possuía nenhuma jóia encrustada ou era feita de metal nobre, ela servia somente para se treinar a técnica de esgrima. O jovem passou correndo pelas escadas e corredores até o salão de treinamento, no centro do térreo. Alexander estava sentado no chão de pedra com as pernas cruzadas. Sua espada, Durandall, estava deitada em seu colo. Os olhos deles estavam fixos em Draco quando entrou pela porta.
— Vamos começar logo o treinamento de hoje. - disse ele.



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2 comentários:

  1. Curti muito o seu blog. Sua história é muito show! A forma como você descreve as situações e os diálogos são simplesmente incríveis. Se fosse um livro, certo que eu compraia lendo apenas o primeiro paragráfo. Algo bom se nota nas primeiras palavras. O seu texto me passou isso. E após ler o primeiro capítulo só comprovei o que já havia pensado.

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  2. Opa, que bom que gostou. Obrigado pelo comentário =D

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